Um lugar chamado CBGB

Existem lugares que viram referência com o tempo e onde todos querem estar. Nunca são esquecidos, nem mesmo quando não mais existem. O número 315 da Bowery, em Manhattan, era um desses lugares. Era o endereço do adorado CBGB, o berço do punk rock e do new wave nos EUA.

Foto de Adam Di Carlo, tirada em 10/01/2005


A sua história começou em 1973, quando o músico e empresário Hilly Kristal resolveu abrir um clube musical no bairro do East Village que, na época, era uma área desvalorizada e considerada até perigosa (vejam só, como as coisas mudam…). O nome e sobrenome do estabelecimento era CBGB-OMFUG e significava “Country, Bluegrass, Blues, and Other Music for Uplifting Goumandizers” (Country, Bluegrass, Blues e Outras Músicas para Gulosos Entusiasmados). Sim, de início, estes eram os gêneros que Hilly queria que fossem tocados ali. Porém, o que o tornaria lendário foi um outro tipo de música que ia na contramão do rock progressivo predominante na época. No lugar do preciosismo melódico e músicas intermináveis, o punk trazia, no geral, uma sonoridade crua, curta e grossa; onde o músico nem precisava saber tocar bem o seu instrumentos e três acordes já eram mais do que suficientes. É claro que nem todas as bandas seguiam rigorosamente o mesmo padrão, mas também marcavam um novo tipo de atitude.

Danny Fields, Arturo Vega, Joey Ramone, David Johansen e amigos na porta do CBGB. Foto de Bob Gruen, de 1977.

O Television foi o primeiro grupo de rock a pedir para se apresentar no CB’s. Depois Patti Smith apareceu com sua banda e muitos outros foram chegando, atraídos por uma chance de mostrar sua música. Imagine todo esse pessoal, no começo de suas carreiras, se revezando no palco e convivendo no mesmo espaço: Richard Hell & The Voidoids, Johnny Thunders & The Heartbrakes, Ramones, Blondie, Talking Heads, Dead Boys, Misfits, The Dictators, entre outros. Não sabiam eles que, em alguns anos, todos seriam conhecidos no mundo todo e fundamentais para a música dos anos 70 e 80.

Ramones em ação no palco do CBGB. Foto de Roberta Bayley, de 1976.

Música boa, comida ruim e muito fedor

Lugar descolado hoje em dia, sobretudo aqui em São Paulo, remete àquele que figura nos guias de entretenimento e pode até fazer sucesso por sua descontração e simplicidade, mesmo que essa imagem seja militrimetricamente construída de forma intencional. É um móvel retrô num canto, com uma pintura feita para parecer “envelhecida”; é um grafite na parede para imitar o clima das ruas… enfim, um local todo trabalhado no conceito de ser cool. Digamos que o CBGB era um clube de outro tempo. A verdade é que ele era um muquifo. Julgando pelos depoimentos dos músicos antigos, era só para os fortes mesmo.

Patti Smith no CBGB, em 1974

Patti Smith no CBGB, em 1974

Segundo Patti Smith, no seu livro “Só garotos” (que já foi abordado em um post deste blog), “era um clube na rua dos oprimidos que atraía uma gente estranha que gostava de artistas ainda desconhecidos. A única coisa que Hilly Krystal exigia de quem tocava lá era que fosse novo”. Existiam muitos cantos da Nova York dos anos 70 que não eram nada convidativos. Os bêbados da rua, por exemplo, costumavam fazer fogo em latões de lixo para manter o calor, cozinhar ou acender cigarros. O bairro era povoado por mendigos e prostitutas. Só os punks tinham coragem para chegar ali.

Patti ainda conta como era o interior do clube. “O CBGB era um salão comprido e estreito com um bar do lado direito, iluminado pelos luminosos de propaganda de várias marcas de cerveja. O palco era baixo, do lado esquerdo, ladeado por murais de fotografias de beldades da virada do século em trajes de banho. Passando o palco, havia uma mesa de bilhar, e, nos fundos, uma cozinha engordurada e uma sala onde o dono, Hilly Krystal, trabalhava e dormia com seu galgo persa, Jonathan”.

Apresentação do Blondie em 1977 no CBGB. Foto de Godlis

Aliás, era a presença de cães que dava um toque especial ao CB´s. “Era difícil se concentrar no CBGB [nas apresentações] porque ali cheirava muito mal”, escreveu Debbie Harry, frontwoman do Blondie, na biografia oficial de sua banda. “Krystal mantinha cães nos fundos, e eles vomitavam e faziam cocô indiscrimidamente. A cozinha era coberta de gordura, ratos, moscas, larvas e merda também”. Logo se supõe que a gastronomia não era o forte do clube, que também tinha um bar. O depoimento do empresário musical Leee Childers, no livro sobre a história do punk, “Mate-me, por favor” dá uma amostra: “Então, na primeira vez em que a gente foi ao CBGB´s comeu chili, que tinha um gosto horrível. O lugar inteiro fedia a urina. O lugar inteiro fedia como um banheiro. E havia literalmente seis pessoas na plateia, e daí os Ramones entraram no palco e fiz : ‘Oh… meu… Deus’”.

Chris Stein – músico fundador do Blondie e importante fotógrafo para a história do punk e do new wave – fez os registros dos recantos do CBGB nos seus últimos dias. Aqui você tem uma palhinha das fotos de Chris, mas, se quiser, pode ver mais no seu site Rednight.

Imagem do palco já desmontado

Um dos famosos banheiros

Uma das portas

De clean ele não tinha nada. Não havia nenhum espacinho que não fosse inundado por quilos de adesivos e pichações. Era quase uma caverna sufocante, cujas camadas nas paredes podiam revelar parte da história da música. Não tenho notícias de outro muquifo que fosse tão adorado como o CB´s foi.

Neste site, você pode ter uma experiência de um tour virtual pelo interior do CBGB.

Nada é para sempre

Além das bandas que, praticamente, fizeram do CB´s a sua incubadora, outras, ao longo do tempo, fizeram apresentações em seu palco: Sex Pistols, Police, Strokes, Sonic Youth, entre outras tantas. Até os brasileiros Supla, Ratos de Porão e Planet Hemp também apareceram por ali. No final dos anos 80 e durante os 90, o mote do clube foi a cena do punk hardcore independente.

O tempo foi passando e o entorno do clube foi passando por grandes transformações, que acompanhavam a sofisticação e elitização crescente de Manhattan. Os valores imobiliários subiram de forma estratosférica e Krystal, afogado em dívidas, não conseguiu dar conta do aluguel. Alguns artistas ainda tentaram arrecadar fundos para salvar o clube, mas não foi mais possível. Em outubro de 2006, o CBGB fechava suas portas, homenageado com uma semana de shows dos artistas que saíram do seu palco para o estrelato, como Patti Smith e membros do Blondie, The Dictators e Television. Era o fim de uma era. Hilly Krystal ainda desejava levar o CB´s para Las Vegas, porém não resistiu por muito tempo além de seu clube. Faleceu em 28 de agosto de 2007, em consequência de um câncer no pulmão.

Aparência da fachada depois do fim. Foto de Chris Stein.

No ano passado, foi realizado um festival de música com inúmeras bandas em vários pontos de Nova York. A edição deste ano será realizada em outubro. Pode até ser uma interessante homenagem, mas a energia do clube repousava mesmo sob o toldo branco de letras vermelhas; cujo local, atualmente, abriga uma loja de roupas roqueiras do estilista John Varvators.

Relembrando o CBGB

Material sobre o clube é o que não falta. No Youtube você pode encontrar facilmente diversos filmes e apresentações da sua época inicial. A própria turma da Blank Generation (as bandas dos primórdios) fazia seus filminhos independentes, no melhor estilo Do It Yourself do punk. Mas isso é assunto para outro post…
Abaixo, seguem as duas partes do documentário “CBGB´s: The Roots of Punk”, infelizmente sem legendas em português.

No que diz respeito a livros, não deixe de ler o já citado anteriormente “Mate-me, por favor: uma história sem censura do punk” de Legs McNeil e Gillian McCain, que no Brasil foi publicado pela L&PM. Trata-se de um livro construído com base em entrevistas feitas com todos os envolvidos na história inicial do punk. É bem divertido, por sinal. Muitas situações acabam girando em torno do clube e de seus frequentadores, obviamente.

Há um site do CBGB que conta a história dele, mas que, sobretudo, divulga os eventos atuais ligados a ele.

Em outubro deste ano, irá estrear, nos EUA, o filme “CBGB”, sob a batuta do diretor Randall Miller. Não há data prevista para a estreia no Brasil. Mas o trailler já foi divulgado. Contudo, já tem gente dizendo que o filme foi higienizado demais por Hollywood e que carece daquela sujeira que “smells like a punk spirit”. Como dizem os portugueses: “a ver vamos”.

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